Free Jazz: o som que nasceu do sangue nas ruas
(por Henrique Maranhão)

“Durmo sozinho, com algumas precauções: uma cadeira travando a porta, se alguém abrir a janela, uma corda derruba um vaso da penteadeira e eu acordo, debaixo do travesseiro está a pistola, e no lugar da minha mulher, um taco de beisebol.” Provavelmente você já viu cenas como essa em algum filme do Scorsese, mas eu garanto que esse estilo de vida era comum entre os músicos de jazz durante a década de 1960, principalmente os jazzistas de apoio, pouco conhecidos, esses costumavam andar em grupos para tocar nos clubes; corriam o risco de morrer todos os dias, pelas mãos da polícia, da Ku Klux Klan e outros bandos racistas. Tentativas de linchamento faziam parte da normalidade.

Após uma apurada audição de diversos discos, passei a concordar plenamente com Wu Ming 1, autor do brilhante New Thing: não da pra aguentar o cool.

Como o escritor define: “O noneto de Miles Davis pode ser, mas as coisas da Costa Oeste, Chet Baker… Dave Brubeck! Eu não via a hora que aquilo terminasse.” O free jazz surgiu no fim dos anos 50, se solidificando como estilo após se tornar título de um álbum de Ornette Coleman, mas para os autênticos arquitetos dessa nova onda, rótulos era coisa de branco. Eles criticavam até a palavra jazz, para eles era “a música” e ponto final.

Coltrane acabou com a raça do jazz nutella da Costa Oeste.

No trecho seguinte, veremos com exatidão como Wu Ming 1 detalha  o terreno em que estamos pisando.

A nova música, no início, era assim: o sax de Ornette e o trompete de Don Cherry eram os cães, seguravam a música pela guia. Prestando atenção, você ouvia o bop, ouvia Bird, Monk e Miles, e mais pra trás ouvia Duke com toda a Basin Street, o gospel das igrejas batistas, o blues do Delta, o pacto com o diabo de Robert Johnson, os respingos de saliva da gaita de Sonny Boy… Mais pra trás ainda, você houvia a escravidão, o último rufar do tambor antes que o seu antepassado fosse jogado num navio, ouvia os pretos putos da vida…

1957 é o ano do “despertar espiritual” de John Coltrane, ele acaba se afundando na heroína e é expulso da banda por Miles Davis. Coltrane decide encarar a abstinência trancado em um quarto na Filadélfia. Depois vai para Nova York, grava com Thelonious Monk e começa a tocar no Five Spot.

Claro que o processo de desintoxicação é bem demorado. Já passei por cinco internações e posso afirmar: um processo de reconstrução humana e artística é bem demorado. Coltrane foi rápido e forte o suficiente para em 1965 se tornar um deus. Com A Love Supreme, o cara ganhou uma enxurrada de prêmios: disco do ano; melhor sax tenor do ano; jazzista do ano e a porra toda. Wu Ming 1 recorda que “na conceituada revista Chronicler, recebeu até o primeiro lugar entre os ‘maratonistas do jazz’, conseguindo tocar dez horas sem parar.”

(Trailer do documentário “Chasing Trane: The John Coltrane Documentary”, escrito e dirigido por John Scheinfeld)

Estamos falando de grandes nomes, mas é preciso ressaltar que muitos outros possíveis grandes nomes, músicos brilhantes, os melhores pianistas em atividade viveram e morreram completamente fodidos. Discriminados por serem negros e explorados como artistas. E mesmo os maiores nomes ainda estão renegados, sem nenhuma memória na história, por exemplo, do cinema americano. O filme sobre Johnny Cash ganhou um Oscar, mas alguém aqui já ouviu falar ou assistiu uma merecida produção cinematográfica sobre Billie Holiday, Duke Ellington ou Count Basie?

Obviamente você já percebeu que este texto não reproduz a famigerada narrativa de vitimização, muito menos de lacração. Estou estancando o sangue de um dos estilos mais marginalizados na indústria musical.

Faço questão de situar este artigo em alguns acontecimentos históricos:

Em um período bem próximo no espaço-tempo, Miles Davis estava tomando porrada de policiais brancos na entrada de um clube. Muhammad Ali se recusava a ir pro Vietnã e Martin Luther King fazia seu famoso discurso contra a guerra em uma igreja no Harlem…

Em determinado momento, na Califórnia, Huey P. Newton e Bobby Seale fundavam o Black Panther Party, com um programa que incluía autodefesa contra a brutalidade da polícia, emprego, moradias decentes e alimentação para as comunidades negras completamente à margem do Estado.

Em 1969, o chefe do FBI, J. Edgar Hoover declara ao New York Times que os Panteras Negras são “a maior ameaça à segurança interna do país”. Quando entra em ação um programa do governo chamado Cointelpro (Counterintelligence Program), que havia sido montado nos anos 50 pra neutralizar o Partido Comunista, depois foi usado contra a Nova Esquerda e teve seu auge contra os movimentos negros pelos direitos civis.

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Com a prisão das principais lideranças do Panteras, estouram revoltas nos guetos negros de todo o país. Nesse período morrem John Coltrane, Otis Redding, entre outros. O número de ativistas negros mortos pelos racistas já era consideravelmente alto antes que o FBI começasse matar.

Infiltraram agentes em todos os principais grupos de resistência. Um dos guarda-costas de Malcolm X era agente infiltrado. Havia tantos agentes disfarçados em tantos movimentos, que era comum um agente do governo assassinar outro agente sem saber que estavam do mesmo lado. Parece roteiro do Tarantino, mas a vasta documentação do Cointelpro está mais para a imaginação de Stephen King ou dos principais roteiristas de terror.

Onde entra o fascismo nessa história? Fascismo representa uma luta contra o caos. Eles buscam a ordem em tudo, inclusive nas artes. Sempre tentaram deter gente como Coltrane e outros artistas considerados subversivos.

Talvez nos dias atuais, onde a vigilância e o controle social ganharam contornos de ficção científica e racistas voltaram a desfilar imponentes nas ruas – existam artistas, jornalistas, ativistas dormindo com uma cadeira travando a porta; se alguém tentar abrir a janela, um sensor de movimento do Iphone dispara um alarme; debaixo do travesseiro uma pistola; e no lugar da mulher, a certeza de ter feito Backup e dos dados estarem em segurança. Quando a privacidade é hackeada , transformamos travesseiros em nuvens.

 

A fusão definitiva para além do Jazz

 

Em agosto de 1969, Miles Davis reuniu um grupo muito talentoso de músicos e decidiu unir o jazz a elementos africanos, como o blues, o funk e um certo tempero latino. Assim nasceu um dos discos mais influentes e polêmicos da história da música. Bitches Brew (que alcançou o top 10 norte-americano vendendo mais de 500 mil cópias) seria responsável pelo nascimento de um novo estilo de jazz, o fusion, que acabou se tornando uma das principais influências do rock progressivo da primeira metade da década de 1970.

Atualmente, Iggy Pop revelou uma lista com os 12 álbuns mais importantes e influentes em sua extensa carreira musical, um dos maiores ícones do rock citou The Complete Hot Five and Hot Seven Recordings, Vol. 1 de Louis Armstrong e The Heavyweight Champion de John Coltrane.

Poderia me estender com inúmeras histórias de como esses visionários do jazz foram fundamentais nos trabalhos de grandes personalidades. Poderia falar da brilhante parceria de Ornette Coleman com William S. Burroughs, na composição da trilha do filme inspirado no clássico Naked Lunch (Grove Press, 1959).


(Ornette Coleman, William S.Burroughs & Brion Gysin (1983)

Quem, assim como eu, teve o prazer de ouvir e até mesmo tocar com Lanny Gordin, sabe muito bem que seu experimentalismo na guitarra tem fortes influências jazzísticas e progressivas. Gordin é considerado um mestre pelos maiores guitarristas do rock nacional. Se eu for escrever sobre todos os álbuns de artistas em que ele tocou e produziu, esse texto não vai ter fim.

Quando lembro das vezes em que assisti esses arquitetos da MPB tocando em bares esfumaçados, Lanny Gordin tocando no antigo Teta Jazz Bar, em Pinheiros, a sensação que se tem é que quem domina o jazz pode produzir um grande álbum de qualquer estilo musical. Quem tiver interesse em saber como está a produção artística atual de Lanny Gordin, recomendo o documentário Inaudito, dirigido por Gregorio Gananian.

Quem, assim como eu, teve o prazer de ouvir o baterista Gigante Brasil, principalmente na fase final de sua carreia, quando tocava no Ventania Bar, em Moema, sabe muito bem que, além de ser um dos principais nomes do movimento Vanguarda Paulista, estamos falando de um baterista de Jazz completamente raíz que tocou com grandes nomes da MPB: recebeu uma enorme exposição ao participar do disco e dos shows do álbum Mais, um dos melhores trabalhos de Marisa Monte. Sobre seu talento, a revista Rolling Stone Brasil declarou: “Preciso, ele era certeza de uma cozinha perfeita em qualquer show e disco que participasse: tinha ‘trovões nas mãos’ e segurava perfeitamente tanto uma sessão de improviso ou quando fornecia a leve cama para o brilho de um intérprete.”

Meu amigo e parceiro de composições Sander Mecca, teve a ousadia de registrar uma versão da música No Quarter, do Led Zeppelin, dividindo o palco com Gigante Brasil e seu grupo Abandonada. Uma preciosa fusão de rock com jazz que você pode encontrar no youtube.

Nos créditos finais de New Thing, referência para a pesquisa deste artigo, o autor Wu Ming 1 descreve uma breve homenagem aos dois livros que foram suas principais inspirações. Ficou encantado com a maneira como foi escrito Please Kill Me: The Uncensored Oral History of Punk, De Legs McNeil e Gillian McCain (Grove Press, New York, 1996). E também Gauleses Irredutíveis. Causos e Atitudes do Rock Gaúcho, de Alisson Ávila, Cristiano Bastos e Eduardo Müller (SagraLuzzatto, Porto Alegre, 2001). Agradecendo aos três autores por terem-no acompanhado em paseios, mostrando a cena rock and roll do Rio Grande do Sul.

 

Henrique Maranhão é roteirista, escritor e produtor musical.

 

Referências Bibliográficas

WU MING 1. New Thing. Conrad Editora, 2008.

 
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canal do Rock. **
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