Mark Sandman e a banda Morphine
Um adulto no rock alternativo dos anos 90
(por Henrique Maranhão)
(Foto:Banda Morphine nos anos 90 / divulgação)
Para começar a compreender a formação artística de Mark Sandman, podemos traçar um paralelo entre duas belas histórias de vida.
Primeiro, assim como Frank Sinatra, Sandman passou por aquela experiência comum da primeira metade do século XX – o momento em que o pai de família lhe dá duas opções: ou arrume um emprego ou siga seu rumo. Sandman escolheu a segunda opção. Mas diferente de Sinatra, que pegou sua mala e foi direto para Nova York bater em todas as possíveis portas de gravadoras, preferiu um caminho mais espiritual.
Muito parecido também com o caminho trilhado por Christopher McCandless, o jovem que inspirou o filme Na Natureza Selvagem, dirigido por Sean Penn, Sandman vagou por regiões diversas, inclusive chegou ao Alasca, trabalhando profissionalmente como pescador por um ano. Por volta de 1972, era cozinheiro num barco de pesca. Resolveu descer sentido América do Sul, até perder seu passaporte em Machu Picchu, no Peru. Onde arrumou um emprego relacionado a colher cogumelos e cultivar maconha.
Após ficar doente no Brasil, voltou para os EUA e começou a tocar em diversas bandas. Lançou três discos com seu grupo de blues chamado Treat Her Right. Inegavelmente, trataram muito bem o blues.
Em 1989, em Boston, Massachusetts, Sandman inovou em um processo de rock com jazz, em que ele cantava e tocava um baixo slide de apenas duas cordas, acompanhado de Dana Colley no sax barítono e do baterista Billy Conway: Eis a implacável formação do Morphine.
Não faço uma escolha racional quando decido escrever um artigo, também não pretendo me aprofundar nas ressalvas que tenho quanto a noção de livre-arbítrio. Meus padrões intuitivos, tanto na pesquisa quanto no próprio ato de escrever, são caminhos que desconheço. Quando faço uma analogia entre a jornada espiritual de McCandless e a busca por reconhecimento de Sinatra; sinto que Sandman, como uma antítese do rockstar, conseguiu transitar entre os dois caminhos: o completo desenvolvimento do espírito e o eterno reconhecimento do estilo em seu meio artístico.
Se o grande público ainda não deu o devido valor, isso se deve ao fato de que alguns nascem póstumos. Multidões estão conseguindo enxergar agora o brilho das estrelas que já se foram.
A década de 90 acabou dando espaço para diversas bandas classificadas como rock alternativo. Com o protagonismo da MTV, algumas dessas bandas foram alçadas ao patamar de celebridades mundiais e, em sua maioria, de maneira desproporcional ao talento dos músicos e qualidade das canções.
A fórmula básica era simples: quanto mais os produtores investiam para que um clipe passasse duzentas vezes por dia na emissora, mais o grupo se tornava comercial. Mark Sandman não estava desesperado por sucesso imediato, esse tipo de artista costuma buscar um legado de qualidade permanente.
Percebam o declínio na qualidade dos álbuns da maioria dos grandes nomes – gringos e nacionais – nas décadas de 80 e 90.
Não é o caso do Morphine.
Mesmo gostando de todos os trabalhos desde a formação do Treat Her Right; meu favorito é o The Night, quinto e último álbum de estúdio do Morphine, completado pouco antes da morte súbita de Mark Sandman, em 1999 e lançado em 2000. Fenômeno raro, quando na maioria dos casos os primeiros álbuns são considerados melhores.
Pensem num último álbum impecável. Rope on Fire nos remete à sonoridade do Oriente Médio, enquanto nossas silhuetas estão subindo uma corda em chamas. Souvenir é um sonho rodeado pelos sons do saxofone, ao estilo David Lynch, uma lembrança de nada.
A música tema do The Night é uma obra de arte. A poesia perfeita na melodia perfeita. Inclusive, Sandman costumava ser muito inspirado nas faixas temas. Like Swimming, por exemplo, é minha faixa favorita do quarto álbum e Cure for Pain é a pérola do segundo.
Caso você já tenha circulado pelos bastidores de grandes eventos musicais, provavelmente sentiu uma profunda decepção ao descobrir que seu ídolo não passava de um bebê chorão.
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Falando da cena rock and roll dos anos 80/90, encontramos um oceano de pivetes iletrados, com suas bandas de garagem e suas roupas ridículas, convencidos de que seriam as maiores descobertas da indústria musical.
Sempre fui defensor do ego no meio artístico. Com certeza estamos falando de um dos meios onde se faz necessária uma crença surreal em si mesmo. Porém, é preciso dominar o ego, a fim de evitar papéis patéticos e vexames na carreira, vejam o caso Eddie Van Halen, por exemplo.
Uma das regras de Mark Sandman, desde os primórdios da sua banda de blues, era que nenhum dos músicos levassem aos shows mais instrumentos do que seriam capazes de carregar.
Se recusaram a interpretar a madame travestida, que desce de seu luxuoso automóvel, enquanto suas mucamas carregam seus equipamentos.
Josh Homme, produtor e fundador do grupo Queens of the Stone Age, definiu sua visão sobre Sandman: “Ele parecia um homem de verdade.”
O fato de Sandman estar exatamente onde deveria – tão ciente de suas capacidades ao ponto de construir seus instrumentos – sabendo que sua música era muito boa e seu público seletivo e excepcional (Ben Harper sabe muito bem do que estou falando) fazia com que sua figura fosse um mistério, um artista fora de contexto. Se não tivesse falecido precocemente, tendo uma parada cardíaca no palco, durante uma apresentação na Palestrina, numa fatalidade sem excessos, certamente hoje seria um dos músicos mais influentes do rock.
Vapors of Morphine
(Foto: Vapors of Morphine por Lisa Deupree / Site: www.vaporsofmorphine.com)
A banda Vapors of Morphine foi fundada em 2009 pelos membros remanescentes do Morphine, com a intenção de manter a chama ou os vapores do incêndio que a breve passagem de Mark Sandman provocou.
Em 2014, se apresentaram no Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, dentro da programação da 8ª edição do Mês da Cultura Independente.
No dia 20 de setembro de 2017, se apresentaram no Cine Joia, o show de abertura foi do quarteto paulistano Hierofante Púrpura, som psicodélico de altíssima qualidade. Fiquei sabendo dessa apresentação pouco depois de ter acontecido, mas pude ver Vapors of Morphine em pinheiros, além de acompanhar algumas sonoridades recentes.
Eles estão mantendo a pegada com dignidade, as duas vozes se encaixam perfeitamente como nos tempos de Sandman, o estilo vocal permanece intacto com algumas levadas instrumentais mais pro rock progressivo.
Outro detalhe de respeito ao legado de Sandman, além de buscarem uma “substituição” à altura, foi o cuidado com a mudança no nome da banda.
Vapors of Morphine não somente herdou a musicalidade, como também a classe e a grandeza de espírito.
Henrique Maranhão é roteirista, escritor e produtor musical.
Referências Bibliográficas
Cure for Pain – The Mark Sandman Story (2011).
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canal do Rock. **
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