Leonard Cohen: Agradeço pela dança
(por Henrique Maranhão)
Em algum lugar, entre minha iluminada infância e as paixões da juventude, encontrei canções de Leonard Cohen. Estavam na trilha de um filme de Oliver Stone, acabei comprando a trilha apenas para ouvir suas músicas. Mais tarde, enquanto trabalhava na tradicional locadora 2001, reencontrei Cohen em diversos longas da minha pesquisa cinematográfica, como em Onde os homens são homens (1971), de Robert Altman; em Caro Diário (1993), Nanni Moretti, um dos meus preferidos entre os diretores italianos, utiliza muito bem a música de Cohen no contexto da história; outro cineasta fundamental em meu encantamento pelo cinema, o alemão Werner Herzog, nos brinda com Cohen na produção experimental Fata Morgana (1971).
Apenas alguns exemplos de que Leonard Cohen passeia por trilhas de diretores consagrados em diversos países e há muito tempo. Podemos encontrá-lo inclusive em produções atuais, alternativas e comerciais, como em A Espera (2015), do diretor Piero Messina (um som de Cohen com o olhar de Juliette Binoche, dificilmente vai desagradar); e também podemos encontrar um dos seus maiores hits na animação Shrek (2001).
Suas poesias sempre estiveram relacionadas a imagens que, ao mesmo tempo marcantes, vão se desfazendo lentamente. Como declarações feitas na areia da praia, cartas apaixonadas despedaçadas pelo instinto do esquecimento ou como amantes desenhando em vidraças embaçadas nos chuveiros. Uma força que muda sua direção e ao mesmo tempo se despede, não deixando rastros para um possível retorno de si mesmo.
Comecei a escrever e compor muito cedo, devido à mais bela escritora que me iniciou nas letras e nas canções; também devo à sensibilidade de minha mãe o fato de que mulheres estejam sendo excepcionalmente gentis à minha velhice.
Sempre que assisto o clipe da faixa Because Of, do inacreditável álbum Dear Heather, lembro das meninas, pulando de calcinha e sutiã em cima da cama do hotel, enquanto eu me entorpecia. Como no relato de Cohen, embora de maneira diferente:
“Elas faziam um lugar secreto em suas vidas ocupadas e ficavam nuas, então se curvavam sobre a cama e me cobriam, como um bebê que tremia.” |
Destaco a versão do R.E.M. para First we take Manhattan, uma sombria melodia ao estilo das trilhas de Ridley Scott nos anos 80; Joe Cocker também fez uma boa versão dessa faixa, além de regravar Bird on a Wire.
Não sou um apreciador do U2, mas como eles gravaram Tower of Song com o próprio Cohen, merecem ser citados entre as grandes regravações.
Nick Cave assumiu sua religiosidade fazendo várias versões, inclusive um ótimo cover de Suzanne; mas ainda prefiro na voz de Nina Simone, que conseguiu dar o swing perfeito a uma canção extremamente melancólica.
Roberta Flack fez uma versão brilhante de Hey, That’s No Way To Say Goodbye. A regravação instrumental de Anna Calvi para Joan of Arc é belíssima, temos Pixies interpretando I can’t forget. Lover Lover Lover na voz de Ian McCulloch, vocalista do Echo & the Bunnymen, e claro, a excepcional versão de My Secret Life por Eric Burdon, numa levada que lembra as melhores canções de Van Morrison. O alcance de Cohen atravessa diversas gerações de artistas.
Muito antes de Jeff Buckley tornar Hallelujah popular, a faixa já havia conquistado o coração de Bob Dylan. Embora Dylan tenha afirmado que “suas canções cada vez se parecem mais com orações”, ainda não ouvi poesia mais profana que The Future; temos uma versão folk de Teddy Thompson, com metais precisos e vocal honesto, mas ainda prefiro Erlend Ropstad & The Salmon Smokers, em um tributo de altíssima qualidade, de 2017, que também teve uma linda interpretação da jovem Aurora para Famous Blue Raincoat, letra maravilhosa em forma de carta assinada no fim da canção, que também foi muito bem regravada por Tori Amos.
Escrevo esse texto em quarentena, estamos em 2020. Muitas lives e pouca poesia. Não posso perder as lives do meu guitarrista vivo favorito, David Gilmour, um dos gênios do Pink Floyd. Enquanto Gilmour divulga as poesias de sua mulher Polly Samson, percebo que ele não toca músicas próprias, apenas Cohen em voz e violão. Se existem casamentos perfeitos entre poesia e melodia, um dos seus expoentes se chama Leonard Cohen.
Estamos falando de um canadense, nascido em 21 de Setembro de 1934, numa família judaica, que resolveu se dedicar à música após os 30 anos, quando já era um escritor consagrado. Quando pensamos em imagens que, ao mesmo tempo marcantes, vão se desfazendo lentamente, podemos incluir datas e noções de tempo. As marcas deixadas pela poesia de Cohen em minha construção artística são mais antigas do que posso recordar.
Quanto mais amadureço mais minhas composições ganham contornos de Cohen, tanto melodicamente quando na estrutura poética. Quando encontro palavras que definem as nuances das minhas experiências, descubro canções dele com melhores traduções. Death of a Ladies’ Man, lançado em 1977, é simplesmente uma obra de arte. Com faixas que lembram os clássicos de Dean Martin, é o disco perfeito para afastar pensamentos negativos em finais de ano solitários, nenhuma das musicas te deixa pra baixo.
Consegue encostar a orelha contra as finas paredes do hotel, escutar a mulher amada com outro e não enlouquecer de ciúmes, pelo contrário, ser capaz de tirar um fardo de sua alma ao ouvir que o amor está completamente fora do seu controle. E na próxima música estar dançando com uma garota loira e alta no canto mais escuro do ginásio, encharcados de balões e serpentinas, pensando que em momentos solenes como esse é preciso colocar a sua verdade e toda sua fé para ver o corpo dela nu.
Iodine é a grande faixa do álbum Death of a Ladies’ Man, com metais perfeitos que te enchem de esperança; mesmo quando os beijos, toques e tudo em um relacionamento está tomado por chamas de iodo.
Foto: Capa do álbum Death of a Ladies’ Man – Eva LaPierre, Leonard Cohen e Suzanne Elrod
Poderíamos analisar o impacto, tanto na vida quanto na obra, quando se é criado em uma casa de mulheres; isso aliado ao fato de que na escola de Cohen, meninos e meninas ficavam em partes separadas, sem qualquer tipo de interação.
Tanto que Cohen era visto por amigos como um cara sortudo por viver em uma casa com a mãe e a irmã, enquanto grande parte dos meninos reclamava da falta de mulheres, Cohen possuía essa “vantagem” e era considerado o cara um pouco avançado nos conhecimentos sobre os mistérios femininos.
No início da adolescência, Cohen adquiriu profundo interesse pela hipnose, chegando a estudar um livro com diversas técnicas sobre o tema. Mais tarde, confessou que utilizou a empregada como primeira cobaia e, através do transe, fez com que ela tirasse a roupa. Se ela tirou por hipnose ou porque quis, jamais saberemos. Mas temos um pequeno registro de onde começou a surgir sua voz calma e pausada, onde em muitas faixas acaba soletrando sílaba por sílaba, buscando levar o ouvinte a um determinado tipo de transe, podemos definir sua música como um jogo de sedução.
A maioria dos nossos artistas favoritos, quando vistos de perto, revelam-nos falhas e, muitas vezes, um caráter conflitante. Com relação a Leornard Cohen não podia ser diferente. Mesmo fazendo parte da trilha sonora da minha vida, faço questão de trazer à luz um momento obscuro em sua carreira.
Em 1994, chegando ao auge de sua aproximação com o budismo, Cohen passa a viver no mosteiro de Mount Baldy Zen Center, próximo de Los Angeles. Em 1996, ganhou o status de monge zen, e ganharia o nome Dharma de Jikan, significado de “silêncioso”. Como todo monge budista, Cohen sempre soube o valor do silêncio para que as palavras e a música soem com perfeição.
Resolveu abandonar a sociedade para se tornar monge, afinal, possuía uma bela fortuna estimada nas cifras do milhões de dólares. Acontece que uma amante com quem Cohen manteve relações por décadas, e que acabou ocupando o posto de sua contadora, resolveu roubar sua fortuna e desaparecer do mapa. Não temos todos os detalhes do porque ela resolveu fazer isso, mas estando completamente falido, se viu obrigado a retomar a carreira; pra mim, o ponto negativo foi que ele voltou aos palcos por necessidades financeiras, enquanto sua assessoria de imprensa declarava que era por amor ao público e saudades de fazer shows.
Isso nos mostra uma lição muito importante:
Na esmagadora maioria, todas essas grandes bandas que aprendemos a admirar, quando anunciam suas voltas retumbantes, a questão principal é sempre financeira. São músicos que não aguentam mais olhar pra cara uns dos outros.
Esperava que Cohen admitisse o motivo real de sua volta aos palcos, acontece que a indústria musical não funciona de maneira honesta e o público é visto por eles como palhaços necessitados de produtos e ícones. Como não posso deixar escapar minha marca de derrubar ídolos, digo que tanto o público quanto os artistas não passam de palhaços nas mãos invisíveis de quem comanda os bastidores do circo.
Claro que esta pequena “mancha” não diminuiu minha admiração pelo trabalho de Cohen. Em uma sociedade onde temos mais ídolos do que realidades, faz-se cada vez mais necessário saber separar as coisas, principalmente a vida pessoal da obra. Dear, Leonard. Sei muito bem que você partiu realizado, sei também que muitos artistas se realizaram e estão se realizando inspirados em seu talento. Não tenho mais palavras, apenas, agradeço pela dança.
Foto: Leonard Cohen (Facebook)
Atrás das linhas inimigas de meu amor
O poeta curitibano Fernando Koproski reuniu uma seleção de poemas de Cohen, com traduções impecáveis em seu livro Atrás das linhas inimigas de meu amor. Uma bela homenagem com direito a uma poesia do autor dedicada a Leonard Cohen. Koproski tem outros livros com seleções e traduções de poemas, também livros com poesias próprias.
Não posso deixar de indicar algumas canções, tanto de seu último álbum You Want it Darker como do póstumo Thanks For The Dance, finalizado por músicos fãs de seu trabalho e com produção de seu filho Adam Cohen.
No auge de seu amadurecimento, alcançou outro patamar em poesias musicadas de forma impressionante. Na verdade não vou selecionar faixas dos dois últimos álbuns porque todas merecem ser ouvidas. As que mais tenho ouvido são Happens tho the heart, You Want it Darker, The Hills e Steer Your Way, essa última, a faixa recente que melhor define duas das características que mais admiro em sua música: a marcação do violino e um trabalho de backing vocals sofisticado e diferenciado.
Henrique Maranhão é roteirista, escritor e produtor musical.
Referências Bibliográficas
SIMMONS, Sylvie. I´m Your Man. Editora Best Seller Ltda, 2016.
KOPROSKI, Fernando. Atrás das linhas inimigas de meu amor. Viveiros de Castro Editora Ltda, 2016.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canal do Rock. **
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