O que os 30 anos do manisfesto Dogma 95 pode ensinar ao cinema nacional.
(por Henrique Maranhão)
Minha primeira noite na cracolândia poderia ser a cena inicial de um filme muito foda, daquelas produções que marcam a carreira de qualquer grande diretor que iniciou de forma visionária e com poucos recursos.
Cena 1, externa, fim de tarde: O casal de namorados, de mãos dadas, subindo a rua Helvétia, em direção ao aglomerado de zumbis da cracolândia clássica. Ele a deixa esperando em um local seguro, um beijo viciado, e então diz: “não vou me perder lá dentro, vou pegar as drogas e já volto”. Ele passeia por diversas barracas, quilos de cocaína em balanças, ao ar livre, pedras enormes de crack expostas nas mesas. Em uma barraca, uma senhora, uma adolescente e uma criança fumando crack. Ele pergunta: “posso experimentar um pouo antes de comprar?” e a senhora responde: “Claro, sente-se aqui”.
Colocaram uma pedra enorme no meu caminho, ou melhor, no meu cachimbo. Uma quantidade que eu levaria horas e fumaria durante toda uma noite, mas como tive a ousadia de pedir para experimentar de graça, não poderia fazer desfeita, fumei aquela porra me sentindo o policial de “Bad Lieutenant” – a versão de Werner Herzog, de 2009, por favor. Comprei mais umas dez pedras e voltei completamente atordoado, cheguei delirante nos braços de minha amada. Nos sentamos na calçada, alguém ligou um projetor e passaram um documentário na parede que estava à nossa frente. Assistimos a um documentário sobre Milton Santos, mas aqui, nessa introdução de roteiro, a projeção inicia o próprio filme em questão, com uma bela história de amor entre eu e minha ex, ao estilo da metalinguagem de “Faces”, de 1968, dirigido por John Cassavetes. “Faces” carrega a essência do cinema independente, o espírito rock and roll de maneira elegante, real e sutil, um roteiro original para o teatro que acabou virando filme, e ainda teve a atriz coadjuvante Lynn Carlin como a primeira artista não profissional a receber uma indicação ao Oscar.
Viu como é simples fazer cinema? Você só precisa vivenciar uma experiência real, fumar crack e saber escrever. Nada mais belo e devastador do que a produção independente quando atinge o grande público, e muito mais foda, ainda, quando o diretor de um sucesso independente não submete suas produções futuras às imposições dos financiadores. “Julien Donkey – Boy”, de 1999, dirigido por Harmony Korine, é uma prova visceral de que é possível realizar uma produção impactante, com uma das maiores interpretações da história do cinema, com autenticidade e orçamento muito reduzido. Não atingiu o grande público como “Faces”, mas valeu a pena em cada frame, como um surto esquizofrênico saltando da tela.
Tarantino iniciou sua trajetória, como o maior de sua geração no cinema norte-americano, bebendo na fonte do “roteiro foda com poucos recursos e locações limitadas”; e “Reservoir Dogs”, de 1992, continua sendo um dos seus melhores trabalhos. David Lynch trilhou o mesmo caminho com “Eraserhead”, de 1977. Robert Eggers mudou a tragetória do horror com “The Witch”, de 2015, todo ambientado em uma locação simples no meio do mato, sem grandes efeitos. E, em seguida, realizou “The Lighthouse”, de 2019, ambientado em um farol abandonado. E não se engane quanto à simplicidade de uma locação barata – Thomas Vinterberg enfrentou muitos mais desafios na preparação de elenco de “Festa de Família”, de 1998, ambientado dentro de uma casa, do que Paolo Sorrentino filmando “Le conseguenze dell´amore”, de 2004, com várias ambientações.
A atuação é a energia vital que move o cinema, podendo citar a genialidade de Harmony Korine em duas ocasiões: a espetacular interpretação de Ewen Bremner, como o jovem esquizofrênico em “Julien Donkey-Boy”, de 1999, e a brilhante atuação de um elenco inteiro em “Mister Lonely”, de 2007. Se você busca esse nível de desempenho no cinema nacional, recomendo a atuação de Gero Camilo em “Bicho de Sete Cabeças”, de 2000, direção de Laís Bodanzky; Myriam Muniz como Dona Eulália, em “Nina”, de 2004, com a estreia de Heitor Dhalia na direção; José Dumont em “Abril Despedaçado”, de 2001, dirigido por Walter Salles; o diálogo de pai e filho, entre Raul Cortez e Selton Mello, em “Lavoura Arcaica”, de 2001, direção de Luiz Fernando Carvalho, meu filme brasileiro favorito, quando pavimentou a linguagem poética do nosso cinema, Nelson Pereira do Santos jamais poderia sonhar que um dia seria alcançada a beleza e a profundidade de “Lavoura Arcaica”.
(Foto: Cena do filme ‘Lavoura Arcaica’ de 2001)
Considere essa pequena declaração de amor e ódio ao cinema nacional, dedicada ao aniversário de 30 anos do movimento Dogma 95, como um ensaio libertário. Se dependesse de alguma classe artística alienada, eu estaria vivendo como Wladyslaw Szpilman, em “O Pianista”, de 2002, dirigido por Polanski, pisando em ovos na hora de escrever para não machucar os sentimentos de algum animal de teta depressivo com cabelo azul, tentando não chamar a atenção de esquerdalhas que apoiam censura em nome da defesa da democracia.
Fodam-se as regras do Dogma 95, embora bem intencionadas; quem respeita alguma regra por aqui? Porém, o espírito do Dogma 95 nunca caiu tão bem como no atual momento do cinema nacional, fincar as raízes no que realmente importa, grandes histórias e grandes atores não faltam, sem enfeites. Fodam-se os editais e a burocracia de Estado, a corrupção e a miserável distribuição de verbas; quem vive de subsídios governamentais é um funcionário público, está chegando a hora dos novos cineastas meterem o pé na porra da porta. Eis um paradoxo, a tal da classe artística brasileira não merece o cinema que ela mesmo realiza; mesmo com toda a sua hipocrisia e indignação seletiva, muitos militantes são incrivelmente talentosos. O segredo da felicidade, na vida, é a desobediência; já a felicidade nas artes está em separar a obra, do artista.
Filmes
1. Bad Lieutenant, Werner Herzog
2. Encontro com Milton Santos, Silvio Tendler
3. Faces, John Cassavetes
4. Julien Donkey – Boy, Harmony Korine
5. Reservoir Dogs, Quentin Tarantino
6. Eraserhead, David Lynch
7. The Witch, Robert Eggers
8. The Lighthouse, Robert Eggers
9. Festa de Família, Thomas Vinterberg
10. Le conseguenze dell´amore, Paolo Sorrentino
11. Mister Lonely, Harmony Korine
12. Bicho de Sete Cabeças, Laís Bodanzky,
13. Nina, Heitor Dhalia
14. Abril Despedaçado, Walter Salles
15. Lavoura Arcaica, Luiz Fernando Carvalho
16. O Pianista, Roman Polanski
.
Henrique Maranhão é roteirista, diretor artístico, escritor, compositor e produtor musical.
.
*** Canal do Rock, Diagramação por Marcelo Vasconcelos. ***